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Diário do Nuno

Arquivo:  
2008-02-01
07:02
Em Varanasi ha' 2 casas crematorias junto ao rio Ganges. Chamam-lhes "burning ghats". Ja' tinha visitado um deles durante o dia. Ontem, depois de assistir 'a puja de adormecer o Ganges (cerimonia religiosa que acontece diariamente ao final da tarde), decidi visitar o outro que e' o mais importante. Comigo estavam o Durguesh e o Ishan, sobrinhos do Rohit. Ao visitar o primeiro crematorio tinha ja' visto os corpos a serem cremados com pernas de fora e tudo. Achei interessante mas nao fiquei impressionado, por isso nao dei grande importancia a visitar o segundo e nao estava preparado para o que aconteceu.

Era noite. Ao chegar perto do ghat, diversas fogueiras enormes e luminosas. Decidi tirar uma foto. No momento em que tiro a foto aparecem uns 6 ou 7 rapazes que, de forma agressiva me comecam a dizer que era proibido tirar fotos ali, que era mau para o karma e que alem disso agora ia para a prisao e ia pagar uma multa gigantesca, em suma, que estava tramado. Aproximei-me dos meus amigos que tambem ficaram confusos com a situacao. Os tais rapazes cada vez mais agressivos e eu cada vez mais assustado por achar que me iam roubar a maquina fotografica. Tentei falar com eles mas berravam comigo dizendo "don't try to be a smart tourist". Disseram-me que tinha de ir com eles, que me iam levar a umas senhoras que iam resolver o meu problema. Estava muito escuro e eu nao entendia nada do que se estava a passar. Os meus amigos estavam tambem com medo. Decidi entao tornar-me amigo deles. Perguntei-lhes porque estavam a ser agressivos e expliquei que estava baralhado, que queria cooperar mas que nao entendia nada porque estavam a ser agressivos. Entao o chefe deles mudou de atitude e tornou-se amigavel. Explicou-me que as senhoras que me iam resolver o problema eram umas velhinhas que estavam ali numa casa 'a espera de morrer e que eu tinha de as visitar e dar-lhes um donativo e ser abencoado por elas para me livrar do mau karma de ter tirado uma fotografia ali. Ainda convencido de que me iam roubar a camara disse "ah! podiam ter dito logo! claro que eu as quero ajudar!" (e e' verdade que teria todo o gosto em lhes dar um donativo). Sem ter outra alternativa, fui atras deles.

Mandaram-me entrar num predio muito escuro que ficava mesmo por cima das fogueiras. Subi umas escadas sem luz, 'a espera do momento em que me iam roubar. Entrei numa sala igualmente escura e, para meu alivio e surpresa, apontaram com uma lanterna e la' estavam duas mulheres sentadas a um canto, na total escuridao, 'a espera da morte. Fiquei muito impressionado. Disseram que tinha de lhes dar 10 mil rupias (200 euros). Sem saber quantas mulheres la' estavam e imaginando que me iam obrigar a dar um donativo a cada uma dei apenas 10 rupias 'a primeira. Eles zangaram-se, levaram-me para o pe' da janela e explicaram-me que 10 rupias era um insulto, que nao serviam para nada, que eu devia dar pelo menos 500. 'As tantas eles disseram: se nao quiseres dar nao des nada, podes ir embora e sofrer as consequencias. Nessa altura estavam menos agressivos e eu comecei a perceber que, embora estivesse a ser manipulado e estivessem a mentir em relacao aos valores e 'as consequencias de tirar uma foto, era verdade que o donativo era para as senhoras. Voltei para o pe' de uma senhora e dei-lhe 100 rupias e ela deu-me a bencao tocando-me na cabeca. Eles ficaram muito satisfeitos, agradeceram-me e ajudaram-me a sair de volta para a rua. Aconteceu tudo muito rapido. O breu total e o insolito ambiente - que tinha tanto de maravilhoso quanto de assustador - tornaram toda aquela situacao muito intensa.

Ao sair tomei consciencia de onde estava: 'a minha volta pilhas e pilhas de madeira para cremar. Em vez de voltar pelo caminho de onde tinha vindo, entrei pelo meio das pilhas de madeira e vi-me rodeado por uma autentica fabrica. Num frenesim, dezenas de pessoas passavam apressadas de um lado para o outro carregando madeira. Aproximei-me de uma varanda e foi ai que me confrontei com uma das imagens mais marcantes da minha vida. A poucos metros de mim 6 fogueiras ardiam intensamente. 'A volta de cada fogueira varias pessoas velavam cada corpo e tratavam das fogueiras. A cada 5 minutos um grupo de 8 pessoas apareciam carregando mais um corpo envolvido em panos dourados para ser cremado. O fumo de todas aquelas fogueiras trazia um inevitavel cheiro a carne assada. Este ambiente era o completo oposto dos nossos pacificos e silenciosos cemiterios e, no entanto, perante tal intensidade e beleza e com os sentidos todos saturados, eu senti uma tranquilidade impar.

Passado um bocado fui embora, ainda meio abananado com tudo o que aconteceu. Entrei com o Durgesh e o Ishan pelo meio das estreitas ruas da cidade velha. De alguns em alguns metros tinhamos que nos encostar 'a parede para deixar passar mais um corpo carregado por um grupo de homens que desciam para o rio. Os meus amigos avisaram-me para nunca tocar nos corpos que passam pois e' algo muito grave. 'A medida que nos fomos afastando fui lentamente regressando ao mundo dos vivos. Nunca vou esquecer este momento que foi um dos mais intensos e maravilhosos da minha vida.

Depois, ja' em casa, o Rohit explicou-me que aquele crematorio funciona sem parar, 24h por dia e 365 dias por ano, ha' centenas e centenas de anos. Que se acredita que o Shiva mora ali e que sussurra ao ouvido de quem ali e' cremado um manta secreto que da' acesso 'a imortalidade.